José Sarney hoje é o resultado do bom aluno, do intelectual ativo e criativo e do político que comandou o País e fez a transição da ditadura para a democracia
José Sarney completa hoje 90 anos. Nasceu em Pinheiro a 24 de Abril de 1930. Foram até aqui 32.850 dias de existência ímpar, nada comparável à maioria das vidas nonagenárias em qualquer tempo e lugar do planeta, principalmente em se tratando de um homem público. No Maranhão não há registro de uma trajetória que sequer se aproxime da dele, podendo-se dizer o mesmo no Brasil, onde nenhum político do seu tempo viveu o que ele viveu, chegou onde chegou e curte agora merecida aposentadoria, sem, porém, parar de trabalhar intensamente um só dia sequer, ampliando sua extensa e reconhecida obra literária, e também palpitando sobre política, no âmbito doméstico e no plano nacional, ora como conselheiro, ora como observador e ora como partidário. E com a autoridade de quem, com exceção da primeira tentativa para a Câmara federal ficou suplente, mas assumiu logo, e da eleição indireta para presidente, se aposentou tendo vencido todas as eleições que disputou.
O Jose Sarney político militou no movimento estudantil nos anos 40, foi suplente de deputado federal no início dos anos 50 e tornou-se titular ainda naquela década, integrando o célebre movimento UDN Bossa Nova. Democrata convicto, situado no centro, liberal, mas sem dificuldades de conviver com a esquerda nem com a direita, foi deputado federal até 1965, quando aos 36 anos se elegeu governador, tendo sido depois senador até 1984, ano em que foi eleito vice-presidente, tornando-se presidente da República, após o que retornou para o Senado, onde permaneceu até 2014, tendo presidido a Casa e o Congresso Nacional por quatro vezes. Nesse período, conviveu com a ditadura militar, presidiu o maior partido do País, o PDS, rompeu com o regime e com a agremiação e ingressou no MDB, onde permanece até hoje.
Deputado federal, José Sarney liderou parte da sua geração contra o vitorinismo, então a força política hegemônica no Maranhão. Governador, comandou um arrojado processo de transformação jamais visto nas estruturas do Estado, liderando uma transição que tirou o Maranhão de um coronelismo quase feudal, alimentado pelo vitorinismo, e o colocou nos trilhos do desenvolvimento e da modernidade – estradas, escolas, hospitais, infraestrutura e atualização administrativa. Presidente da República num lance do destino, comandou a sua mais importante obra política: a transição da ditadura para a democracia, sem traumas, instaurando um regime de democracia plena, com a volta das liberdades civis, tendo convocado a Assembleia Nacional Constituinte, que consolidou o estado democrático com a Constituição Cidadã de 1988. De volta ao Senado, em 1990, agora eleito pelo Amapá, estado por ele criado, presidiu o Congresso Nacional por quatro vezes, atuando intensamente como legislador – são de sua autoria projetos como o que garantiu o fornecimento gratuito de medicamento para aidéticos e o que criou o sistema de cotas para afrodescendentes na universidade, entre outros -, virando o século como o mais sábio, experiente e equilibrado conselheiro político da República.
O gigante político também se agigantou intelectualmente, materializando uma dualidade rara ao “conciliar” o militante político de tempo quase integral, primeiro com o jornalista e depois com o escritor – poeta e prosador – produtivo e de qualidade reconhecida pela crítica. Obras como “Canção Inicial” (poesia) e “Norte das Águas” (contos) abriram caminho para o escritor respeitado por dezenas de títulos, entre eles “Maribondos de Fogo” (poesia), “Brejal dos Guajás” (contos), e os consagradores romances “O Dono do Mar” e “Saraminda”, grande parte traduzida em mais de duas dezenas de idiomas. Eleito para a Academia Maranhense de Letras com pouco mais de 20 anos, José Sarney chegaria à Academia Brasileiras de Letras no final dos anos 80, sendo hoje o seu decano. Ao contrário do político, que se aposentou das urnas, o escritor continua em plena atividade, como atestam as suas crônicas nas edições domingueiras de O Estado, por ele fundado em parceria com o poeta e jornalista Bandeira Tribuzi.
Ao longo dos seus 90 anos, José Sarney se tornou uma figura planetária. Como deputado federal, representou o Brasil na ONU, onde depois falou cinco vezes como presidente. Criou o Mercosul, juntamente com seu colega argentino Raúl Alfonsin criador, e patrocinou, em grande medida, a volta da democracia na América Latina, especialmente no Cone Sul. Como político e intelectual, se relacionou com as figuras mais importantes, como Ronald Reagan (EUA) e todos os presidentes que o antecederam até Bill Clinton, com líder russo Michail Gorbachev, o francês François Miterrand, a britânica Margareth Tatcher, o chinês Deng Xiaoping, o português Mário Soares, entre muitos outros líderes. O intelectual foi igualmente longe, convivendo com Jorge Amado, Josué Montello e todos os grandes nomes da literatura nacional das últimas sete décadas, de Manoel Bandeira a Ferreira Gullar. E no plano planetário, foi elogiado pelo antropólogo francês Claude Levi Strauss, o Nobel de Literatura, e pelo mexicano Otávio Paz, tendo convivido com o português José Saramago, o genial colombiano Nobel da Literatura Gabriel Garcia Márquez – com quem conviveu numa comissão especial sobre meio ambiente na ONU -, e o consagrado francês Maurice Druon, com quem conviveu nas Nações Unidas, entre muitos outros.
Ao longo desse quase-século, Sarney enfrentou desafios, venceu quase todos, mas também amargou dissabores, como o fracasso do Plano Cruzado II, a “deportação” política e eleitoral para o Amapá, o Caso Lunos – que tirou a filha Roseana Sarney (MDB) da corrida presidencial de 2002 – e a derrota da mesma para Jackson Lago (PDT) na disputa para o Governo em 2006. E teve de encarar duras críticas quando rompeu com a presidente Dilma Rousseff (PT) e responder pelo escândalo dos “atos fantasmas” durante seu comando no Senado. Encarou esse e outros reveses com sabedoria.
Nada disso o afetou diretamente, tendo ele conseguido superar todas as crises, percalços e desafios que se puseram no seu caminho, dando uma lição de habilidade e competência em cada guerra que teve de travar ao longo desses 1.080 meses passados desde que nasceu em Pinheiro, no dia 24 de Abril de 1930. Um vitorioso por excelência.