A sentença de Sérgio Moro, em 18 itens

“Não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você”, escreveu o juiz federal Sérgio Moro na última página da sentença que condenou e absolveu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – agora na berlinda da 8.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região.

Lula foi condenado a nove anos e meio de reclusão em regime fechado, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do triplex do Guarujá. E absolvido das mesmas imputações no armazenamento do acervo presidencial.

Traduzida livremente do inglês – “be you never so high the law is above you” –, e sem citação da fonte, o historiador britânico Thomas Fuller, a frase coroa o registro pessoal do juiz da 13.ª Vara Federal ao finalizar o veredicto de 238 páginas. “A presente condenação não traz a este julgador qualquer satisfação pessoal, pelo contrário”, registrou Sérgio Moro. “É de todo lamentável que um ex-presidente da República seja condenado criminalmente, mas a causa disso são os crimes por ele praticados e a culpa não é da regular aplicação da lei. Prevalece, enfim, o ditado (já citado).”

Tenha o destino que tiver no julgamento de amanhã – confirmação ou reforma, no todo ou em parte, com ou sem absolvição –, a sentença recebeu adjetivos radicalmente opostos. “É irretocável”, disse, por exemplo, o presidente do TRF-4, Thompson Flores. “É política”, tem dito um dos advogados de Lula, Cristiano Zanin Martins.

A sentença foi exarada em 12 de julho do ano passado, quase um ano depois de recebida a denúncia da força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal de Curitiba. Lida e relida, mostra a complexa, mas compreensível, estrutura narrativa em que Moro a construiu – deslindada no quadro abaixo. A peça começa com o relatório de praxe – um resumo sucinto da acusação contra oito réus, entre eles Lula –, e logo adentra na extensa fundamentação que embasará a sentença propriamente dita. O juiz dividiu a fundamentação em itens e pontos – apenas com números, sem indicar expressamente o conteúdo de cada sequência. São 18 itens. Começam no ponto 48 e vão até o 937. Para facilitar o entendimento, o Estado classificou cada um dos itens, e os resumiu.

Antes de entrar no mérito propriamente dito, Moro demora-se nas inúmeras questões preliminares arguidas pela defesa. No ponto 302 (página 55) é que define o que chama de “a questão crucial de processo” – a definição sobre a propriedade do triplex do Guarujá.

Resumo da sentença que o TRF 4 vai julgar

I. Relatório

Em dez páginas (2 a 12), traz a síntese da denúncia do Ministério Público Federal e das defesas de cada um dos oito réus. A denúncia é resumida assim:

“Estima o MPF que o total pago em propinas pelo Grupo OAS decorrente das contratações dele pela Petrobrás alcance R$ 87.624.971,26. Cerca de 1% desse valor teria sido destinado especificamente a agentes políticos do Partido dos Trabalhadores e teria integrado uma espécie de conta corrente geral de propinas entre o Grupo OAS e agentes do Partido dos Trabalhadores.

Destes valores, R$ 3.738.738 teriam sido destinados especificamente ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – na disponibilização do apartamento 164-A, triplex, do Condomínio Solaris, sem que houvesse pagamento do preço correspondente; e no não pagamento de reformas e benfeitorias que o apartamento teria sofrido em 2014.

Estima o MPF os valores da vantagem indevida em cerca de R$ 2.424.991, assim discriminada, R$ 1.147.770 correspondentes à diferença entre o valor pago e o preço do apartamento entregue e R$ 1.277.221 em reformas e na aquisição de bens para o apartamento.”

II. Fundamentação

É a parte mais longa de sentença – entre as páginas 10 a 225. O juiz a dividiu em 18 itens, que somam 937 pontos. O texto é corrido, sem intertítulos que explicitem o tema de cada item.

II. 1 Imparcialidade (pontos 48 a 57)

Considera já superado o questionamento de Lula (e de Paulo Okamotto) sobre sua imparcialidade, e relaciona as exceções de suspeição julgadas e rejeitadas pelo TRF-4.

II. 2 Abuso de autoridade (pontos 58 a 138)

Considera “tentativa de desqualificação do julgador” as queixas crimes que Lula e seus advogados moveram contra ele por abuso de autoridade e por quebra de sigilo de interceptação telefônica – não recebidas pelo TRF-4.

Sobre a “guerra jurídica” contra Lula, argumento da defesa, defende como “amplamente fundamentada” a autorização para a condução coercitiva do ex-presidente em 29/2/16. Defende também o levantamento do sigilo das interceptações telefônicas.

Não concorda que a entrevista do MPF ao apresentar a denúncia (a do Power Point, em 14/9/2016) faça parte da “guerra jurídica” contra Lula, como reclama a defesa. Nem que a defesa tenha razão ao reclamar da “instrumentalização da mídia”.

II. 3 Animosidade do juiz (pontos 139 a 148)

Moro rebate a defesa quanto a ter revelado animosidade em relação aos advogados do ex-presidente. Diz que sempre os tratou com urbanidade, “ainda que não tivesse reciprocidade”, e que “o Juízo foi ofendido pelos defensores”. Cita, para reforçar este ponto, trechos de diálogos ocorridos com a defesa durante os depoimentos. Em um deles, a defesa diz: “lavro o protesto porque a interpretação do juízo aberra da constituição e da lei processual penal”. Classificou esse argumento como “estratégia de puro diversionismo”.

II. 4 Imparcialidade (pontos 149 a 152)

É um dos menores pontos de sentença. Afirma que o comportamento processual da defesa, questionável, não afeta a imparcialidade do Juízo. “Cabe decidir a responsabilidade dos acusados somente com base na lei e nas provas.”

II. 5 Competência do Juízo (pontos 153 a 169)

Rebate o questionamento da competência da Justiça Federal, já refutada em outros julgamentos, que cita.

II. 6 Inépcia da denúncia (pontos 170 a 174)

Em dez linhas, recusa as alegações de falta de justa causa e inépcia da denúncia. “A peça (do MPF) descreve adequadamente as condutas delitivas de corrupção e lavagem de dinheiro; foi instruída com prova documental e com os depoimentos extrajudiciais de colaborares e testemunhas.”

II. 7 Suspender a ação (pontos 175 a 178)

Não concorda com o pedido da defesa para sobrestar o andamento da ação até o resultado de um inquérito no STF – o 4325, que apura a participação de Lula “no grupo criminoso organizado que praticou crimes no âmbito da Petrobrás”, segundo a citação do juiz. (O caso está concluso ao relator, ministro Edson Fachim, desde 18 de dezembro de 2017). A suspensão não cabe, diz a sentença, porque os dois procedimentos tem objetos específicos diferentes.

II. 8 Cerceamento da defesa (pontos 179 a 227)

Foi argumento da defesa de alguns réus – Lula entre eles. Moro cita exemplos de requerimentos deferidos e indeferidos. Diz que “a ampla defesa, direito fundamental, não significa direito amplo e irrestrito à produção de qualquer prova, mesmo as impossíveis, as custosas e as protelatórias”.

Citando precedente do Supremo, no HC 100.988/RJ, afirma que “as provas requeridas, ainda que com cautela, podem passar pelo crime de relevância, necessidade e pertinência por parte do Juízo”.

Ao citar uma das perícias pedidas pela defesa de Lula, que indeferiu, Moro adianta seu entendimento sobre uma parte da denúncia: as perícias foram indeferidas, diz o juiz citando a si mesmo, “pois não há afirmação, em principio, na denúncia, de que exatamente o dinheiro recebido pelo Grupo OAS nos contratos com a Petrobrás foi destinado especificamente em favor do ex-presidente”. E ainda “dinheiro é fungível e a denúncia não afirma que há um rastro financeiro entre os cofres da Petrobrás e os cofres do ex-presidente, mas sim que as benesses recebidas pelo ex-presidente fariam parte de um acerto de propinas do Grupo OAS com dirigentes da Petrobrás e que também beneficiaria o ex-presidente”.

II. 9 Colaboradores (pontos 228 a 256)

Moro nomeia as dez testemunhas da acusação: Augusto Ribeiro de Mendonça Neto, Dalton dos Santos Avancini, Eduardo Hermelino Leite, Pedro José Barusco Filho, Milton Pascowitch, Delcídio do Amaral Gomez, Paulo Roberto Costa, Nestor Cuñat Cerveró, Alberto Youssef e Fernando Antônio Falcão Soares. Todas fizeram acordos de colaboração – ou com o MPF, homologados pelo próprio Moro, ou com a Procuradoria-Geral da República, homologados pelo Supremo Tribunal Federal.

Todo o item destina-se a defender o instituto da colaboração premiada – criticado pelas defesas. É questão recorrente em todas as sentenças de Moro na Operação Lava Jato, com a repetição, inclusive, de comentários a respeito feitos pelo juiz americano Stephen Trott.

II. 10 Questionamento dos colaboradores (pontos 257 a 263)

Reafirma a validade da submissão dos colaboradores ao compromisso de dizer a verdade – contestada pela defesa de Lula.

“Colaboradores, quer ouvidos como testemunhas, quer como acusados, depõem com o compromisso de dizer a verdade, conforme art. 4.º, §14, da Lei n.º 12.850/2013: ‘Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade’.”

II. 11 Síntese da Operação Lava Jato (264 a 298)

Esgotadas as questões preliminares, Moro volta ao cerne da acusação. Resume os inquéritos, ações penais e processos incidentes da “assim denominada Operação Lava Jato” que tramitam sob sua jurisdição. E diz: “Em grande síntese, na evolução das apurações, foram colhidas provas de um grande esquema criminoso de cartel, fraude, corrupção e lavagem de dinheiro no âmbito da empresa Petróleo Brasileiro S/A – Petrobras, cujo acionista majoritário e controlador é a União Federal”.

Cita as empreiteiras envolvidas no cartel, diretores da Petrobrás envolvidos no esquema, agentes e partidos políticos beneficiários. Destaca onze sentenças condenatórias de sua própria lavra – entre elas a que condenou José Dirceu – e volta à questão específica do triplex, já pincelada no relatório (pontos 48 a 57).

II. 12 “A questão crucial” (pontos 299 a 419)

Moro repete a síntese da acusação: o Grupo OAS concedeu ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva o apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá/SP, e ainda a reforma do apartamento, como vantagem indevida.

E contrapõe a defesa de Lula: afirma que o apartamento 164-A, triplex, jamais lhe pertenceu e, embora tivesse sido a ele oferecido no ano de 2014, não houve interesse na aquisição e, portanto, não houve a compra.

“Essa é a questão crucial neste processo”, afirma. E explica: se determinado que a acusação procede, haverá prova da concessão pelo Grupo OAS a ele de um benefício patrimonial considerável, estimado em R$ 2.424.991 e para o qual não haveria uma causa ou explicação lícita.

“Ao contrário, se determinado que isso não ocorreu, ou seja, que o apartamento jamais foi concedido ao ex-presidente, a acusação deverá ser julgada improcedente”.

Estabelecido o contraditório, Moro encara um argumento central da defesa de Lula. Qual seja: o apartamento é propriedade da OAS, como mostram o registro de imóvel e outros documentos anexados aos autos, e em nenhum momento contestados pelo juiz.

Diz Sérgio Moro: “Embora não haja dúvida de que o registro da matrícula (do triplex) aponte que o imóvel permanece registrado em nome da OAS Empreendimentos S/A, empresa do Grupo OAS, isso não é suficiente para a solução do caso”.

Argumenta que a configuração dos crimes de corrupção e de lavagem, “que pressupõe estratagemas de ocultação e dissimulação”, não exigiu para sua consumação a transferência formal da propriedade do Grupo OAS para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

E arremata: “Não se está, enfim, discutindo questões de Direito Civil, ou seja, a titularidade formal do imóvel, mas questão criminal, a caracterização ou não de crimes de corrupção e lavagem. Não se deve nunca esquecer que é de corrupção e lavagem de dinheiro do que se trata”.

Passa, então, sob essa ótica, à analise do caso, concluindo pela procedência da acusação.

II. 13 Interrogatório de Lula (pontos 420 a 481)

Moro avalia o interrogatório de Lula, ponto a ponto, considerando todos os seus argumentos pela inocência. Cita vários trechos do interrogatório. Considera que os depoimentos – seja na justiça, seja na polícia – “são absolutamente inconsistentes com os fatos provados documentalmente nos autos”. E conclui: “A única explicação disponível para as inconsistências e a ausência de esclarecimentos concretos é que, infelizmente, o ex-presidente faltou com a verdade dos fatos em seus depoimentos acerca do apartamento 164-A, triplex, no Guarujá”.

II. 14 Testemunhas da OAS (pontos 482 a 647)

Neste item, um dos maiores da sentença (páginas 93 a 167), o juiz da 13. Vara Federal sintetiza os depoimentos que considerou mais relevantes de alguns empregados e fornecedores da OAS Empreendimentos relacionados ao triplex e a Lula. O mais citado é o de José Adelmário Pinheiro Filho, o Léo Pinheiro, ex-presidente do Grupo OAS e eixo central da acusação e da sentença que Moro vai desenhando. Há um erro de forma no ponto 524 (página 111): um trecho do depoimento do empresário é atribuído ao juiz federal.

II. 15 Síntese de denúncia (pontos 648 A 779)

Traz outra “grande síntese” da denúncia do MPF – desta vez com mais detalhes dos contratos entre as empreiteiras e a Petrobrás. O objetivo é “confirmar a existência do grupo de empreiteiras e do ajuste fraudulento de licitações” e “o pagamento de vantagem indevida a agentes da Petrobrás, e agentes políticos e a partidos políticos”.

O juiz também registra algumas negativas de dirigentes de empreiteiras quanto a ter conhecimento “de solicitação ou pagamento de vantagem indevida ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva”.

Conclusão deste item: “Dos valores, da parte cujo pagamento ficou sob a responsabilidade da OAS, cerca de dezesseis milhões de reais foram destinados exclusivamente à conta corrente geral de propinas mantida entre o Grupo OAS e agentes políticos do Partido dos Trabalhadores”.

II. 16 “Testemunhas abonatórias” de Lula (pontos 780 a 833)

Moro aborda, brevemente, os depoimentos favoráveis a Lula – entre eles o do atual ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, também ministro no governo Lula. É neste item que elogia o governo do ex-presidente “no fortalecimento dos mecanismos de controle, abrangendo a prevenção e repressão, do crime de corrupção” – o que “não autoriza qualquer conclusão quanto à culpa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos crimes que constituem objeto da presente ação penal”.

Alinhava, no fim do item (a 29 páginas do final): “É evidente que o Grupo OAS, destinou o imóvel, sem cobrar o preço correspondente, e absorveu os custos da reforma, tendo presente um benefício destinado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e não a sua esposa exclusivamente”.

II. 17 Conclusões (pontos 834 a 918)

Começam as conclusões. Moro afirma que a defesa apresentada pelo ex-presidente “não é consistente com as provas documentais constantes dos autos”. E considera “provados” os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro: “O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi beneficiado materialmente por débitos da conta geral de propinas, com a atribuição a ele e a sua esposa, sem o pagamento do preço correspondente, de um apartamento triplex, e com a realização de custosas reformas no apartamento, às expensas do Grupo OAS”. (…) “Foi, portanto, um crime de corrupção complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos temporais distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente.”

II. 18 Armazenamento do acervo presidencial (pontos 919 a 937)

Na segunda parte da acusação do MPF- corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo o armazenamento do acervo presidencial – Moro absolve Lula, Paulo Okamotto e Léo Pinheiro. “Apesar das irregularidades, não há prova de que ele envolveu um crime de corrupção ou de lavagem, motivo pelo qual devem ser absolvidos desta imputação”, exarou o juiz.

III. Dispositivo – Decisões (pontos 938 a 962)

É a parte final da sentença, em 12 páginas (225 a 237). O juiz julga parcialmente procedente a denúncia do MPF – e sentencia pontualmente cada um dos réus. Começa pelas absolvições – no caso do armazenanento do acervo presidencial, e de três outros réus no caso do triplex: Paulo Gordilho, Fábio Yonamine e Roberto Moreira Ferreira. Os condenados são Agenor Medeiros, José Adelmário Pinheiro Filho (Léo Pinheiro) e Luiz Inácio Lula da Silva.

Na dosimetria da pena, Moro qualifica a culpabilidade de Lula, para os dois crimes, como “elevada e extremada”. Somadas, as penas chegam a nove anos e seis meses de reclusão, além de multa, confisco e sequestro do apartamento, interdição para exercício de cargo ou função pública, e custas processuais.

Antes de encerrar, Sérgio Moro volta a criticar “táticas bastante questionáveis” da defesa de Lula, “como de intimidação do ora julgador” e de outros agentes da lei, procurador da república delegado e até da imprensa. “Até caberia cogitar a decretação da prisão preventiva (…) mas a prudência recomenda o julgamento pela Corte de Apelação”.

No último ponto, o 962, Sérgio Moro conclui:

“Transitada em julgado, lancem o nome dos condenados no rol dos culpados. Procedam-se às anotações e comunicações de praxe (inclusive ao TRE, para os fins do artigo 15, III, da Constituição Federal)”.

O artigo 15, parágrafo III, diz: “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”.

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