Arte de curar, arte para viver (II)

Por Natalino Salgado Filho*
Natalino Salgado enumera filmes com temática ligada ao exercício da Medicina

Iniciei esta série de artigos falando da importância da arte para a formação médica, quiçá para seu pleno desenvolvimento. No artigo anterior, discorri acerca de algumas formas de expressão e quero considerada a sétima arte, qual seja, o cinema, bem como tecer algumas considerações acerca da literatura.

Na tela grande, os profissionais da Medicina já foram retratados das mais diversas formas. Um dos mais famosos de todos os tempos é “Patch Adams – o amor é contagioso”, interpretado pelo ator Robin Williams, que interpreta o médico com métodos pouco convencionais e com profunda compaixão pelo paciente, que faz a diferença e influencia um sem-número de outros profissionais. Outro filme marcante, intitulado Um golpe do destino, traz o personagem médico vivido por William Hurt, que tem a chance de rever sua própria escolha profissional ao se deparar portador de uma grave doença. E o que dizer de Mãos talentosas, que conta a história do médico Ben Carson? Sem dúvida, uma grande inspiração para os discípulos de Hipócrates.

Na literatura, invoco a memória de Anton Tchekhov, dramaturgo e escritor russo reconhecido mundialmente. Ele chegou a declarar que a medicina era sua legítima esposa, e a literatura, sua amante. Khaled Hosseini, Moacyr Scliar e Drauzio Varela são provas vivas de que as mesmas mãos que manejam o estetoscópio são capazes de prodígios também, quando manejam a caneta ou o teclado do computador.

É inconteste: para além do ofício de aliviar dores e curar males, os médicos e demais profissionais da área de saúde não podem e nem devem perder a capacidade de olhar com os olhos da alma, a ouvir, mesmo quando não há nada a ser escutado. Rubem Alves, em seu “Variações sobre o prazer”, faz a distinção, num diálogo extremamente interessante, dos médicos que apenas dão o remédio e daqueles que falam para curar. Para aqueles que, como eu, abraçaram como ofício a escuta prescrutante das agruras do paciente, a sisudez dos ambientes hospitalares e as adversidades indesejadas que chegam sem avisar, o refúgio da arte é um oásis que deve ser cultivado e celebrado.

Quia non in pane solo vivet homo…nem só de pão vive o homem, retruca Jesus ao diabo, quando este, aferrado à concretude, pensa que pode conquistar o Mestre, a ceder ao seu apelo de matéria, num episódio narrado com detalhes no Evangelho de São Lucas. Para além da vida com seu labor ordinário, a literatura nos propicia o alcance de uma existência perene, cristalizada nos escritos, na memória desta e das futuras gerações. O bem e a vida confundem-se, pensa Ivan Ilitch, personagem de Tólstoi, no conto que leva o nome daquele.

Em nosso mister profissional, tocou-nos cuidar de nossos semelhantes, mas a formação acadêmica, como se quisesse nos proteger das agruras e dores alheias e nossas, deu-nos o olhar dito científico. Aquele que olha a coisa, em vez do homem; a doença, em vez da pessoa e a ação terapêutica, em vez da alma. Devemos realizar tudo isso, porém, sem esquecer aquelas. A literatura é este caminho de humanização que a nós dá não uma fuga ou falsa proteção, mas o sentimento de completude em nosso fazer.

Lembro outra famosa obra, esta cristalizada tanto na literatura, como no cinema. Trata-se de “O médico e o monstro”, um dos maiores clássicos de todos os tempos, de Robert Louis Stevenson. O educado médico Jekyll carrega consigo o horrível Mr. Hyde, uma metáfora da fera interior que todo homem não pode esquecer que deve mantê-la sob seu comando e domínio.

Enfim, não há desculpas para manter-nos afastados desse mundo fascinante, sobre o qual acabo de discorrer, ainda que breve. Acredito na literatura como expressão de salvação do labor cotidiano. E no cinema, que possui a mágica de nos transportar para outro mundo. A arte, nessas formas expressas, harmoniza incongruências, forja sentidos, melhora nosso projeto de ser e nos proporciona novos olhares sobre nós mesmos e sobre os outros.

*Médico, doutor em Nefrologia, ex-reitor da UFMA, membro da ANM, da AML, da AMM, Sobrames e do IHGMA

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